O novo “consultor de compras”: como a IA reprogramou o consumo no Brasil
Até ontem, a Inteligência Artificial era papo de departamento de TI ou curiosidade futurista. Hoje, ela decide qual marca de leite entra na sua despensa e se aquele carro híbrido realmente vale a pena...
Até ontem, a Inteligência Artificial era papo de departamento de TI ou curiosidade futurista. Hoje, ela decide qual marca de leite entra na sua despensa e se aquele carro híbrido realmente vale a pena para o seu trajeto diário.

Em menos de três anos, a IA virou um "consultor invisível" no Brasil. De eletrônicos a remédios, algoritmos influenciam de forma direta ou indireta a maioria das decisões de consumo. O resultado é um cliente que descobre mais e compara melhor, mas que também terceiriza escolhas para sistemas que ele nem sempre entende — ou nos quais confia totalmente.
Do entusiasmo ao carrinho de compras: o momento decisivo
Entre 2022 e 2025, a tecnologia saiu do laboratório e entrou na rotina. O que começou como chatbots desajeitados de SAC hoje se espalhou por buscas em marketplaces, apps de farmácia e provadores virtuais.
O salto é numérico e comportamental. O Relatório do Varejo 2025, da Adyen, mostra que 52% dos brasileiros já usaram ChatGPT ou ferramentas similares para auxiliar compras nos últimos 12 meses — um aumento de 52% em apenas um ano. Não estamos falando só de pedir resumo de livro: as pessoas estão montando listas de supermercado e pedindo sugestões de presentes de Natal.
A influência silenciosa (e a negação)
Existe um paradoxo curioso aqui. Segundo a EY, 47% dos brasileiros juram que "nunca compraram" com base em recomendação de IA. Mas, na mesma pesquisa, 87% dizem que as recomendações das lojas online são úteis.
O que acontece é que a IA ficou tão boa que ficou invisível. O estudo CX Trends 2025, da Octadesk, aponta que a hiperpersonalização já pesa em 6 de cada 10 decisões de compra no país. Quando o Spotify sugere uma música ou a Amazon diz "quem viu isso, comprou aquilo", o consumidor não pensa "olha a IA agindo". Ele pensa: "nossa, era isso que eu queria".
Na prática, a pesquisa da Bain & Company com o Ecommerce Brasil mostra que metade dos consumidores já considera que a tecnologia ajuda a escolher itens adequados ao próprio perfil. Em categorias de tíquete alto, como eletrônicos e eletrodomésticos, 58% contam com a IA para comparar preços e vendedores, delegando a parte chata da pesquisa para o robô.
Onde o algoritmo virou especialista
O impacto não é uniforme. A IA atua de formas diferentes dependendo se você está comprando um carro ou uma dipirona.
Farmácia: o "Dr. Algoritmo" e a privacidade
O setor de farmácia e bem-estar é um dos mais transformados, com 60% de potencial de adesão a assistentes virtuais (Bain & Company). Os apps de grandes redes deixaram de ser meros catálogos para virarem consultores de saúde preventiva.
Quem compra vitaminas ou remédios de uso contínuo recebe lembretes de reposição que parecem mágica, mas são pura análise de dados. Mais interessante é o comportamento de busca: consumidores usam IA generativa para perguntar sobre interações medicamentosas ou genéricos mais baratos antes de chegar ao balcão.
Em Curitiba, um farmacêutico relata a nova dinâmica:
“O cliente chega com o print do chat dizendo o que ele ‘precisa’ comprar. Meu trabalho virou, muitas vezes, checar se o robô não exagerou na dose ou se aquela combinação faz sentido.”
Para o consumidor jovem, perguntar ao bot sobre sintomas constrangedores é muito mais confortável do que falar com um humano na loja cheia.
Moda e Beleza: curadoria em escala
Esqueça o vendedor que diz "ficou lindo" para tudo. Em moda e beleza, a IA atua como um stylist impiedoso e preciso. Segundo a Adyen, 74% dos usuários de IA afirmam que ela ajuda a escolher roupas e produtos pessoais.
A mudança aqui é na descoberta. Não se navega mais por categorias genéricas. Feeds personalizados mostram peças que combinam com o histórico de compras e o biotipo do usuário, cruzando dados de devoluções anteriores para sugerir o tamanho exato. A pesquisa da Ilumeo traz um dado revelador: 30% dos brasileiros pagariam mais por produtos sugeridos por um robô, o que indica uma percepção de valor na curadoria algorítmica superior à busca manual.
Autos e Eletrônicos: o fim do arrependimento
Nas compras de alto valor, a IA funciona como seguro contra o erro. É a categoria com maior disposição de uso (66% segundo a Bain). O consumidor não quer apenas saber o preço; ele quer que a IA calcule o custo total de propriedade.
Hoje, é comum ver clientes simulando cenários complexos: "Vale a pena trocar meu carro a combustão por um elétrico considerando que rodo 40km por dia e a energia custa X no meu estado?". O que levaria horas de planilha, a IA responde em segundos. Isso reduz a assimetria de informação. O cliente chega na concessionária ou na loja de eletrodomésticos com perguntas de engenheiro, forçando o vendedor humano a sair do script básico.
O fator confiança: quando o humano ainda vence
Apesar da adoção massiva, o brasileiro mantém um pé atrás. O estudo da Bitrix24 mostra um dado preocupante para as marcas: apenas 37,9% dos brasileiros dizem confiar cegamente em recomendações de algoritmos. Pior: 62,1% relatam resistência imediata quando percebem que estão sendo guiados por automação.
A validação final
É o fenômeno do "robô sugere, humano assina embaixo". Uma pesquisa da Norton sobre compras de fim de ano ilustra bem: o uso de IA para ideias de presentes saltou para 44%, mas 51% dos usuários abandonariam a compra se não pudessem falar com um atendente humano em caso de dúvida.
Em Recife, uma profissional de marketing resume o sentimento geral. Ela usa o ChatGPT para cruzar preços, gostos e fretes de toda a família para o Natal, mas na hora de comprar um perfume caro, chama a loja no WhatsApp.
“Eu adoro a praticidade da IA, mas para passar o cartão, preciso ouvir alguém de carne e osso dizer ‘pode ir, fixa bem na pele’. O robô não tem pele.”
Transparência ou manipulação?
Existe um descompasso entre o que as empresas acham que entregam e o que o cliente sente. Segundo a Twilio, 86% das empresas brasileiras usam IA para recomendação e 91% dizem ser transparentes sobre o uso de dados. O consumidor discorda: só 48% confirmam essa transparência.
A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) virou pano de fundo cultural. O cliente pode não saber citar a lei, mas entende o conceito de consentimento. A personalização excessiva, que antes encantava, agora pode assustar se não ficar claro como a marca obteve aquela informação.
O futuro da vitrine: Generative Engine Optimization (GEO)
Para o varejo, o recado é técnico e urgente. A pesquisa da Cadastra com a Similarweb mostra que, após quatro meses usando ChatGPT, o usuário clica 26% menos em links do Google. O "ponto de partida" da jornada mudou.
Isso cria uma nova disciplina: o GEO (*Generative Engine Optimization*). Marcas que não tiverem seus produtos descritos de forma que as IAs entendam e recomendem vão desaparecer da prateleira virtual. Se o "consultor invisível" não souber quem você é, ele não vai te indicar para o chefe dele — o consumidor.
O Brasil vive um momento único: temos consumidores ávidos por novidade (somos *early adopters* clássicos), empresas investindo pesado, mas uma confiança frágil. A IA já reescreveu o "como" compramos. Agora, começa a definir o "o que" compramos. Vence quem usar o robô para tirar o atrito, mas mantiver o humano para garantir o aperto de mão.
Fontes
47% dos consumidores ainda não fizeram compra recomendada ...
IA, algoritmos e consumo: o que muda no comportamento ... - Baguete
52% dos brasileiros usam inteligência artificial em compras - Abisa
Brasileiros estão usando IA para compras de fim de ano, diz estudo
Inteligência artificial e hiperpersonalização influenciam 6 a ...